10 de fevereiro de 2016

Corpo no chão, cabeça feita


Soundtrack: Gary Jules - Falling Awake

Quando eu era mais jovem, minha vó costumava dizer do poder de, às vezes, andarmos descalço. Segundo ela, precisamos dessa conexão com a terra, desse pé no chão. Como se qualquer sapato, fosse um escudo de energias impedido nossa conexão com algo maior, nossa descarga. Anos depois, em linguagens mais complicadas, me contaram que andar descalço realmente tem esse efeito, chamado de aterramento. A Terra possui cargas naturais e nós conseguimos estabilizar nosso “sistema elétrico” ao tocarmos o solo, como uma relação de recarga. E fiquei pensando logo em uma frase corriqueira que dizemos: pé no chão, cabeça feita. Guarda isso aí, enquanto eu prossigo...

A vida exige mudanças. E exige um pouco mais do que só mudar... Existe o bônus de aprendizado. O que nem todo mundo sabe é quando deve estar preparado para só mudar ou quando também é preciso valorizar qualquer lição, consciente ou inconsciente. Acredito que todos nós somos feitos de buracos, pedaços que vão se encaixando aos poucos, em meio a essa corrida do “mudar versus aprender”. Nestas frestas abertas e às vezes, expostas, acabamos fazendo caber a busca por qualquer coisa que faça sentido, que nos faça esquecer o medo: de sentir, de sofrer, de errar, de sentir o próprio medo. Mudanças que ensinam precisam nos colocar na posição dura de vítima por um certo momento, testando nosso limite de perseverança, quando sempre cabe a velha pergunta: “o que eu estou fazendo da minha vida?”. E aí, você acredita ser a pessoa mais perdida do mundo naquela hora, enquanto no fundo você só é alguém que deseja preencher mais buracos do que outros. E isso pode ser bom – faz a gente querer ser mais completa e sair do piloto automático. Aquele das relações sem dores ou discursos clichês, aquele das vidas tranquilas sem dificuldades para trocarem de carro quando bem querem ou seguirem suas profissões, mesmo infelizes. Aquele das pessoas que parecem somente acordar, viver e dormir, enquanto você mal dorme em alguns dias, enquanto você parece testar cada limite do seu coração, com frases estúpidas e cobranças pessoais.

Apesar de parecer dolorosos e bagunçados, somos aqueles que aceitaram deitar nessa tábua de emoções que a vida dá – para falar, sentir, viver, não querer mais, insistir, chorar, rir até doer por alegria ou desespero, perder, ganhar, sentir medo. Apesar de tudo isso, nós temos a moeda mais valiosa dos dias atuais: nós nos preocupamos com a capacidade de sentir, pois isso é nossa humanidade e essa é a graça da coisa toda. Em certo momento, a dor morre, a confusão acaba, a luta faz sentido e, quando isso acontece, nós mudamos e aprendemos, enquanto aguardamos a próxima oportunidade de renascimento em meio as nossas várias frestas. São nossos ritos de passagem...

Minha vó dizia do pé no chão e a cabeça feita, até que um dia eu decidi deitar no chão gelado e testar a possível troca de energias como meu rito de passagem. Corpo no chão, cabeça feita. Eu deito, ouço música, respiro fundo – às vezes, tentando entender o que eu estou fazendo da minha vida. Mas fico ali, deitada, até a primeira sensação chegar. Até eu chorar, sorrir, sentir medo, querer sair correndo, querer falar algo... Então, recordo a minha capacidade de sentir e, mesmo sem entender nada de alguns caminhos, me sinto viva novamente. Renasço ali. E isso me basta.

26 de abril de 2015

Quando o mundo para


Soundtrack: The Head and The Heart - Rivers and Roads

Quantas vezes a sensação de que o mundo parou pode caber em uma vida? Pensamos que a raridade desses momentos acaba equivalendo à capacidade de sentir as coisas intensamente, ao ponto de tudo parecer pequeno e efêmero diante daquele “timing” – o tal nem antes, nem depois, a tal exatidão. Mas descobri a real diferença entre as duas coisas. Costumava classificar meus timings em momentos superestimados por mim, seja para a alegria, seja para a tristeza. Esses momentos, de cinco segundos ou mais, onde tudo que se vive é a sensação devastadora de que algo em nós se desprende e fica do lado de fora, gravando o que estamos vivendo. Mas, a sensação de que o mundo parou pode ser cruel quando não aprendemos a diferenciar a intensidade do que elas podem representar. E aí vem a diferença. Nesse lapso que são as memórias, essa sensação chegou nos dias em que eu pude sentir como somos realmente carne, ossos e intermináveis portas sensitivas. Seria basicamente impossível não dizer que os meus verdadeiros timings aconteceram nos momentos mais intensos da minha vida. Mas descobri que, na verdade, meu mundo também pareceu parar naqueles momentos mais simples, que cabem dentro das grandes coisas. Lembro-me de tudo parar quando, sem ver, tocaram minha mão sem querer ou em meio a olhares sem contexto, daqueles que são tão curtos, mas que é possível se enxergar ali, dentro da pupila do outro. Meu mundo parou também na simplicidade de alguns fracassos, como não saber dizer tchau, como não saber o que falar diante de algo ou diante de alguém que não falou o que eu queria realmente ouvir. Ele parou quando tão rapidamente planejei um sonho inteiro para minha vida, junto de um pôr-do-sol inesperado, de um vento no rosto num dia cansativo...

A verdade é que percebi que para que o mundo realmente dê uma daquelas paradas que fazem diferença, é preciso estar acompanhada da reciprocidade. A vida já é muito insinuadora de sentimentos pequenos com cara de companhia ou de ausências que nos acompanham mais que a própria sombra. Concluí então que é preciso escolher bem o que seremos nesse caminho desavisado. É preciso decidir o que realmente tem o poder de, em cinco segundos ou mais, dar um stop em tudo. Então, esqueça a intensidade. Esqueça as velhas histórias de que quando o mundo parar, saberemos que estamos num caminho certo. Esqueça o tal “isso é um sinal”. Só faça questão de que, naquele momento único, você tenha alguém inteiramente disposto a dançar, com os pés, a cabeça e o coração... Ainda que seja a sua própria companhia. A vida também tem disso - chama-se coragem.

1 de fevereiro de 2015

Pequenas mortes cotidianas

Soundtrack: Kodaline - All I Want

Sabe quando, de repente, o ouvido da gente parece tampar e percebemos um leve zumbido? Isso tudo pode ser um sinal de morte celular não programada. Quando menos se espera, sentimos uma parte de nós morrer e pronto, tá ali, o fim. Nessa lógica, percebi que somos feitos de outras pequenas mortes cotidianas. Algumas mais silenciosas e duradouras do que um zumbido, mas ainda assim funcionam como um adeus. Um dia, percebemos que certos lugares não nos afetam mais, que certos sentimentos já não se embaralham no viés que é a vida. Já não cabe mais raiva, rancor, mágoa... Já não se sabe mais contar como era aquela história preferida que sempre ficava mais linda a cada repetição. De repente, já falamos "não" quando a vida tenta te fazer olhar para trás, naquela hora desprevenida, entre uma música e outra ou entre um gole e outro de cerveja. 
Pequenas mortes entram em sua vida mesmo quando tudo que se desejou foi acreditar na vida das memórias. Elas entram naquela pequena passagem que as mentiras fazem e de lá seguem caminho para o inconsciente. Até que acordamos e não existe mais o mesmo cheiro, não existe mais o mesmo gosto, não existe mais a mesma dor e nem o medo - de amar de novo, de sentir de novo, de sofrer de novo. Somos renovados pelas pequenas mortes cotidianas e criamos assim novos espaços para viver e nos reencontrarmos nesse ciclo. Como a borboleta que abandona seu casulo, nascemos a cada abandono do que passou e sentimos a liberdade que é o vento novo batendo no rosto, abençoando nossas cicatrizes... Pequenas mortes selecionam e fortalecem o que há de melhor em nós, pois é isso que sempre resta. Os risos simples, os sonhos, a companhia da sua própria fé e o amor verdadeiro. Pequenas mortes nos salvam e nos dão pele nova pra transpirar, mesmo quando nem sabemos, mesmo quando tudo parece não fazer sentido. Elas nos relembram um pouco da nossa humanidade e da nossa fraqueza, quando percebemos que sofrer é inevitável em qualquer parte do caminho, mas que, às vezes, para que algo morra é preciso que a gente caia junto, no aguardo do nosso renascimento. E assim, entendemos que nesse caminho atropelado por descuidos, a nossa história deve sempre caber dentro de nós e não dentro do que os outros criaram para nós. 
Vale a pena morrer... Vale a pena o zumbido, vale a pena o silêncio, vale a pena o grito interior e o estouro, vale a pena cada lágrima, pois isso tudo é a vida - aquela mesma que um dia você deixou de lembrar que controlava.

15 de janeiro de 2015

Mais gelo, por favor.

Soundtrack: Ben Howard - Black Flies

Sem pressa, a pessoa que é sincera com seus sentimentos é aquela que não toma o suco de uma vez. É aquela que, talvez, prefira ver o seu gelo derreter para esperar o suco do outro chegar. Sem simplicidades, a verdade é capaz de definir uma memória inteira de alguém. Por ela, chegamos até as profundezas do outro e podemos vê-lo vestindo sua melhor ou sua pior lembrança.  Assim funciona o mundo de quem decide sempre invadir a vida das pessoas com esse papo de respeito às verdades, se tornando necessariamente destinado a ficar mexendo o açúcar do fundo do copo de suco. Por quê? Nem todos são assim. A necessidade de viver a verdade de cada coisa nos cega e não nos deixa nunca ver a opção “tanto faz” do outro. Tanto faz se precisamos nos preocupar com o que os outros sentem. Tanto faz se a vida é curta, se ela é leve e os chavões estão aí para a gente dizer sempre um grande foda-se para qualquer coisa que a gente sabe que não tem mais poder de controlar. Tanto faz se a vida tem tantas esquinas e que em nenhuma delas vamos desejar que alguém seja verdadeiro com a gente. Tanto faz um coração em paz, quando é mais fácil abraçar qualquer ideia simples de mastigar.


Poucas pessoas sabem viver a verdade, assim como digeri-la e assim se embrenham na mata do tanto faz. Poucas pessoas tem a coragem de sentir as coisas sendo fiéis ao que desejam, ao que são, aos momentos e acabam esquecendo como é a aparência dramática de não ser quem se é realmente. Pouca gente sabe entender o gelo derretido, o açúcar da espera no fundo do copo... E aos que vivem a verdade, resta a espera. Resta o corpo amolecido de tantas vezes que a racionalidade quis bater, mas o coração foi maior. Resta essa caminhada de ida e volta para a paz interior, mas sempre querendo bater nos muros dessa impermanência que é o tanto faz. Esperando cada tijolo da dúvida cair e sobrar somente aquilo que vale a pena. Mas até lá, espera-se, já que esperar faz parte da sinceridade. Esperar pelo inesperado não nos dá a chance de aumentar o valor do que vem, pois aquilo que se tem será sempre o tudo naquele instante. E só.

6 de dezembro de 2014

Ensaio


Soundtrack: Landon Pigg - Can't let go

Amar é como escrever um ensaio.
É criação, mas não tem provas para se basear: o amor é um passo no escuro. 
É poético, mas didático: o amor ensina.

Conheci João em um dia morno. Choveu pela manhã e a noite o tempo ficou estranho. Fazia calor, mas não tinha vento. Era como o sorriso dele, bonito, mas não tinha cor. João trocou somente três ou quatro palavras olhando para mim e eu não liguei. Não pareceu descaso, pareceu amor. Não precisou de roteiro, precisou de um abraço.  É como ver algo que a gente sempre desejou e perder as palavras. Quando eu amei de verdade foi quando eu menos usei as palavras. Com o tempo, João começou a falar mais e limpava minhas sujeiras interiores. Ouvir parecia tão melhor... Até que um dia, como tantos outros, ele parou o carro num lugar proibido. Um conhecido me ligou avisando e eu saí desesperada tentando impedir que levassem o carro embora. Sentei no capô, tampando a placa da frente com as pernas, enquanto o policial tentava escrever a multa. Ele parou o que estava fazendo, sorriu e disse: “você ama ele tanto assim?”. Fiquei sem palavras, sem ter o que dizer e aí percebi que isso poderia significar amor. Só dei um sorriso e consegui não ganhar uma multa. Minutos depois, João veio caminhando na minha direção e pela primeira vez, o sorriso dele tinha cor. Na verdade, naquele dia eu reparei o quanto ele ficava mais bonito sorrindo, de óculos torto e camiseta velha. Naquele dia, amei João e em tantos outros dias de quatro palavras ou mais.

Desconheci João em um dia quente. O sol entrou pela janela e acordei achando que era dia de trabalhar, mas na verdade era final de semana. Fazia calor, mas não tinha vento, assim como minha cabeça, cheia de ideias, mas sem nada pra pensar. Foi um dia estranho, seguido da necessidade de empurrar o peito para dentro com as mãos, impedindo o coração de sair. João levou embora a delicadeza e fez os tantos outros dias deslizarem pelos olhos com a velocidade das palavras, tão cheias de certeza. Não consegui mais imaginá-lo chegando, nem óculos torto e camiseta velha. Naquele dia não consegui ouvir qualquer barulho do mundo - fiquei surda para tudo que vinha de fora, competindo com todo o barulho de dentro. Foi como um dia em que a gente dormiu abraçados uma tarde inteira e quando acordamos já estava escuro, meu braço com câimbra e ele com dor no pescoço. Talvez seja isso... O amor dormiu e acordou diferente, cheio de dores e cansaços. Uma amiga perguntou: “você ama ele tanto assim?” e fiquei sem palavras. Pela primeira vez, isso pareceu um soco no estômago. Era injusto e não desejei que significasse amor. Não parecia amor. João tão cheio de palavras, pessoas, debates e eu sem nada pra dizer. João tão cheio de segurança, rancor, voz alta e eu sem nada pra sentir. Naquele dia, desconheci João e em tantos outros dias de quatro silêncios ou mais.