29 de agosto de 2008

Peixinho fora d'água

Quando era pequena, Clarice mergulhava sem abrir os olhos. Todo mundo abria os olhos, ela não. Tinha medo e por isso preferia ficar lá, no cantinho da piscina enquanto todo mundo abria os olhos lá embaixo e voltava sorrindo. Mas Clarice também sorria. Ela não abria os olhos lá embaixo, mas deixava-os bem abertos enquanto estava com eles fora d'água. Ficava olhando seus pés, os namorados passando abraçados, a maquininha de sorvete, a formiga passando na beirada da piscina. O que mais gostava de olhar eram as ruguinhas da mão, ela pegava a pontinha do dedo e ficava passando na boca, pra sentir o enrugadinho. O pessoal em volta vivia comentando: "mas qual a graça dela não abrir os olhos lá embaixo?". Clarice era carta marcada da piscina do clube social. Sempre que saía, todas as crianças olhavam pra ela e as mães cochichavam: "coitada da mãe, não verá a filha fazendo aula de natação como nossos filhos nunca". Mas a menina nem ligava, ninguém nunca entenderia a sensação de ver os dedinhos enrugados. Não era preciso se abrir os olhos lá embaixo pra ficar feliz, o mundo estava fora d'água e girava mais a cada instante. Com a rotação da Terra, os dias foram passando e Clarice ficou mais velha. Um dia conheceu Augusto e junto com ele abriu os olhos dentro da água. Claro, com uma parede de vidro na frente e em solo. Mas foi assim que ela finalmente conheceu tudo que estava lá embaixo. Viu que aquilo era bem melhor que o fundo da piscina e nem era preciso ficar com os olhos vermelhos. Ela nem gostava de natação mesmo...

14 de agosto de 2008

Geometria planamorosa

Pedro gostava das palavras. Adorava brincar com elas, trocar algumas letras aqui, ali e formar outras mil. Ele tinha uma namoradinha. É... Mas se alguém perguntasse quem era a namoradinha dele, logo esbravejava que não era namoradinha, era namorada. Gostava das palavras, mas não do diminutivo. E gostava de Bebel. Os dois saíam todas as tardes para ver o trem de ferro passar dentro da cidade e naquela tarde de sol não fora diferente. Ficaram lá parados, juntinhos, de mãos dadas, acompanhados de um silêncio sutil, chegando a ser até gostoso. De vez em quando ele olhava para ela e só então se dava conta de que eram dois. De repente, algo lhe veio à cabeça:
-Bebel, você é linda como um ângulo.
-Han?
-Um ângulo... Que pode ser simetricamente perfeito. Ou então, perturbadoramente imperfeito.
-Hum... Legal!
-Você não entende? Quero ser um ângulo também e ser consecutivo a você, para que nossos lados possam se coincidir. Quero ser seu complemento, suplemento, replemento!
E o trem passou.... O fim da história? Eles realmente eram dois ângulos, mas opostos pelo vértice e, nesse caso, iam contra a regra de igualdade. Pedro era 360, Bebel um 0, à esquerda!