24 de novembro de 2008

Obituário

Camilla Leonel Santos, 17 anos. Nasceu em uma cidade pequena do interior de Minas, cidade que lhe deu mais um de seus apelidos: Piumhi. Foi criada com o pai, a mãe e a irmã numa casa que era branca e depois de uma reforma, ficou amarela. Com 2 anos e meio já sabia ler e com 3 aprendeu o que era sala de cirurgia. Descobriu mate-couro, começou a gostar de hospital e daquelas máquinas em que se coloca uma moeda e sai chocolate. Tinha mania de dançar na varanda e corrigir o pai quanto aos tons das músicas. Nunca soube dar estrelinha e tinha a língua um pouco presa para algumas palavras. Fez um vestido de pasta dental no corpo e acreditou que o pai a levaria na roda do carro durantes as viagens, sempre dizendo a todos que só não iria pois entraria poeira nos olhos dela. Tinha uma boneca chamada Anna Luísa, mas ainda não sabia o nome que a filha teria, só dizia que se tivesse um filho chamaria Iano. Foi internada uma vez só na vida, por ter comido maionese estragada e alguns anos depois lhe apresentaram a mostarda. Gostava de desenhar e ficava feliz em desenhar um chão abaixo de tudo que fazia, pois a mãe dizia que era sinal de que ela tinha equílibrio. Com o passar do tempo, ela acabou descobrindo que era um pouco nervosa, pensou até em fazer Krav Magá, mas daria muito trabalho. Antes de completar 17 anos se tornou uma pessoa mais calma e parou de roer as unhas. Teve um peixe, um pogobol (do Gugu) e gostava de Scooby Doo as 18:00 no SBT, até descobrir o computador, mas nunca teve video-game. Por isso mesmo, ia jogar Winning Eleven na casa do primo e acabou tendo uma fase que sua mãe nomeou de "machinho". Andava de calça tactel, jogava futebol e tinha mais amigos homens. Foi bom para compreender um pouco da cabeça deles, mas continou sem entendê-los. Um tempo depois, o cabelo nunca mais foi tão liso e ela descobriu a sensação de estar apaixonada pela primeira vez. Teve alguns "paquerinhas" e poucos amores, mas quando gostou, gostou intensamente, até amou. Cantou numa banda, chegou a dormir sentada e tocar para públicos que iam de 30 pessoas a 10 mil. Conheceu música de verdade, se apaixonou por Tom, Vinícius e seus parceiros. Era uma viciada em Los Hermanos e foi parar no hospital depois de um show do Hillsong United. Colou, passou cola e roubou uma prova com os amigos uma vez. Cortou o queixo no mesmo lugar três vezes, quebrou o braço correndo, coisa que ela nunca fez muito! Assim como estudar, mas sempre se saía bem nas provas. Odiava matemática, adorava português e biologia. Queria ser pediatra, mas depois decidiu ser fisioterapeuta. Amava poemas, contos, poetas, crônicas, livros... E sorvete! Amava seus bons amigos, sua família e tudo que eles representavam. Nunca soube abrir saquinhos de molho e acabou tendo que se virar sozinha depois de uma época. Com 16 anos, saiu de casa e foi morar em Juiz de Fora, onde viveu uma das melhores épocas de sua vida. Conheceu o espiritismo e a doutrina de Allan Kardec, descobriu o que era rumba, miojo com azeite, lavar calcinhas e meias. Para aliviar, começou a escrever em um blog chamado sentimentolices, que chegou a virar um livro publicado posteriormente por um grande amigo. De uns meses antes até seu desencarne, vivia a espera de seu bom e eterno amor. E nesse aguardo, seguiu para a sua vida eterna... Madura em suas verdades, feliz em suas experiências, aprendiz em seus fracassos, mas ainda sem saber que o destino realmente existe até para o amor. Sem saber que quando se espera demais, o telefone nunca toca!

20 de novembro de 2008

Mutação


Soundtrack: Death Cab For Cutie - A lack of color

Ela aprendeu o que era amor. Amor por aquele desajeitado, que gostava de bossa e sorria mais pra um lado. Era amor por aquele que também gostava de cachorro-quente com mostarda, de Fernando Pessoa e Mário Quintana. Era amor por aquele que ria da cara dela ao vê-la com a blusa ao avesso, por aquele que não sabia contar piada, que comia e ficava com a boca suja. Amor por aquela serenidade, por aquele gosto por crianças, pelo cheiro. Era amor pela inteligência, pelo tato, pelo contato, pelo suspiro. Era amor pelos dedos largos, pelo cabelo preto, pela alma limpa. Amor pelos olhos, por tudo que os outros não viam (mas ela via). Era amor com calma, sem encher tudo de palavras bonitas e depois sentir o receio de que não havia mais o que se dizer. Era amor sem precisar dizer eu te amo! Era amor sem entender... E foi amor! Até o dia em que descobriu o que ele já sabia. Descobriu que entre eles havia duas coisas: tudo no mundo e uma outra... Uma outra hora, uma outra vontade, uma outra pessoa. Pegou o amor e guardou na gaveta. Enlaçou os dedos e fez um pedido. O A de amor logo entendeu o recado.
Ela aprendeu o que era amizade... (E fiquem com as reticências!)

13 de novembro de 2008

Sobre a sensibilidade


Soundtrack: Regina Spektor - On the radio

Lá pros seis anos de idade, ela pediu um cachorrinho de presente. Dois dias depois, a mãe chegou com uma sacolinha em casa e entregou à menina dizendo:
- Toma, esse é teu bichinho de estimação.
Era um peixe. Meio verde, meio azul, meio vermelho, chegava a abandonar sua espécie e virar um camaleão. Era tão diferente do que tinha sonhado. Queria uma companhia para brincar, para correr pela casa, para acordá-la com uma lambida. Queria alguém para apertar, fazer carinho, ganhar carinho. Sonhava com o momento em que chegasse da escola e tivesse aquele bichinho peludo a esperar por ela na porta de casa, a abanar o rabinho de alegria.
- Mas mamãe, um peixe?
E a mãe só dizia que peixe não sujava a casa, não era caro de cuidar e não fazia bagunça.
O tal do peixe ficou sem nome por um dia, aliás, ficou sem nome, sem atenção e sem casa. No máximo, ganhou um olhar de desdém da menina, quando ela chegou da escola e não viu um rabinho abanando. Até que no outro dia, a mãe chegou com um aquário na mão:
- Olha, filha! Até parece ser feito do mesmo material do sapatinho da Cinderela.
Mas a menina continou resistindo! Naquela época, a Cinderela não estava em seu melhor momento de fama. E a mãe seguia alimentando o bicho pra ele não morrer. Foi então, que uns cinco dias depois a menina decidiu ver aquela criaturinha. Chegou pertinho do aquário e deu umas três batidinhas com a ponta do dedo. O bichano chegou perto do vidro, arregalando os olhos como se quisesse ver a menina inteirinha. E seguidamente, fez um ritual de abre-fecha com a boca miúda, soltando algumas bolhinhas na água. A menina soltou uma risadinha:
- É, você é até engraçadinho.
E foi deitar pensando num nome pro peixe. Até que no outro dia, acordou e foi logo fazer sua certidão de nascimento. O nome era bem sugestivo: Camalepeixe. E pra quem nada tinha, até ganhou apelidinho: Lêpê!
Nascia ali uma amizade... Todos os dias, o Lêpê era o maior confidente de todos os tempos. Ela contava sobre o seu dia, ele a via fazendo a tarefa, dormia ao seu lado no criado. Era um conselheiro...
- Lêpê, se você acha que eu devo comer brócolis, solte três bolinhas. - Pausa para resposta do peixe. - Está certo, eu como!
E assim foi, até que numa manhã, ela acordou e como sempre, deu bom dia ao Lêpê dando três batidinhas no aquário. Ele não respondeu...
- Lêpê, deixe de ser dorminhoco. Até eu já estou acordada!
Mas ele não dava resposta. Não soltava bolhinhas... Nem abria os olhinhos esbugalhados! Foi então que ela entendeu: Lêpê estava morto.
Foi um dia triste! O peixe havia realmente se tornado um membro da família. A mãe ficou desgostosa no trabalho, o pai chegou a ir lá no aquário dizer adeus ao escamado. No fim da tarde, acabaram com as visitas ao falecido e a menina deu a idéia de enterrar o peixe. Durante o enterro, algumas lágrimas caíram e colocaram pra tocar aquela música do Milton Nascimento:
- Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar... - cantavam em coro.
Enterraram o peixe, após as rápidas palavras de saudade da garota. Começou a chover e todos saíram do quintal.
- Vamos fazer pipoca, mamãe? Eu adorava comer ao lado do Lêpê.
- Ô filha, a empregada já deixou a janta pronta.
Chegando na cozinha, abriram as panelas e viram que o jantar preparado era peixe frito. No dia seguinte, a empregada estava na rua e junto com o seu dinheiro, um recado escrito em letras maiúsculas: sua insensível!

2 de novembro de 2008

Parábola


Soundtrack: Other Lives - Black table

- Ah, quem te ensinou a ser assim? Como sempre tem razão ao me dizer não? Como sempre põe paixão ao me dizer sim? Por que tem piedade ao deixar-me um talvez? Para me ver aqui assim, perdida? Ah Vida, nesse caminho em que te fiz companheira inseparável parece que não me ensinas como romper do adeus! Já não aceito mais qualquer poeta, não respiro qualquer palavra, não assovio mais no ritmo antigo. Parece que fico a ouvir vozes me dizendo: vai, esquece, busca teu cais! Mas que cais? Nem barco tenho e aqui estamos, eu e você, a sentir enjôos do mar do esquecimento. Ah vida, que cadência é essa que marcas? Vou andando contigo, mas parece que só às vezes me vês aqui, nesse canto de sala, sabendo da troca dos meses somente por se olhar uma folhinha velha na parede. Na verdade, eu bem sei que não vais responder a essas perguntas, ficarás calada, me deixando ver esse espetáculo criado a cada dia, a cada amanhecer, a cada raiar. Mas acontece, que já se fizeram muitas manhãs e você só me mostrou que saudade pura não alimenta, nem se mastiga. Ah Vida, vai até lá e diz... Diz que não quero voltar, mas que por vezes ainda pego no vento palavras que, um dia, cheguei a acreditar que pudessem ser sem fim. Diz que ainda sinto o cheiro, ainda vejo o sorriso ao abrir a porta, ainda lembro das horas de poesia, das boas conversas, escuto até o silêncio. Diz que quando ele perceber que se encontra sem tino, poderemos nos encarar com sinceridade! E até lá a cadeira da amizade já estará acolchoada, nova em folha para ele se sentar. Mas por hora, Vida, peço novamente que me ensine como esticar as mãos para o adeus. Me ensina essa arte de outros encontros, pois ele já aprendeu. Pede o perdão se não gostei como devia e diz que perdôo por não me gostar como eu queria. E depois que o fizeres, volta e me diga: por que fazes isso com alguém que mesmo sem respostas não te largas as mãos? Por que fazes isso com tão bobo coração?
E prontamente a Vida respondeu, como se oferecesse rendição:
- Faço para que escrevas, menina!